POR QUE GASTAR TRILHÕES PARA COMPRAR PAPEL PODRE? ANÁLISE DA CIRCULAR 4.028 DO BANCO CENTRAL, POR MARIA LUCIA FATTORELLI
Maria Lucia Fattorelli (i)
07.07.2020
Em plena pandemia, temos assistido o aprofundamento de privilégios e benefícios ao setor financeiro que, nos últimos anos, já vinha batendo crescentes recordes de lucros de muitas dezenas de bilhões de reais.
Dentre as medidas aprovadas, a mais escandalosa é o rebaixamento do Banco Central a mero operador independente do mercado de balcão, podendo destinar trilhões de reais de dinheiro público para a compra de papéis podres de bancos e grandes fundos que atuam nesse desregulado mercado.
Apesar da discussão sobre a inconstitucionalidade da matéria no Supremo Tribunal Federal por meio da ADI 6417, o mercado financeiro avança com sua pauta, pois sabe que manda no mundo, por meio da atuação do BIS – entidade privada que se diz banco central dos bancos centrais e subordina 132 bancos centrais[ii ], inclusive o Banco Central do Brasil.
Assim, a diretoria do Banco Central publicou a Circular Nº 4.028, de 23 de junho de 2020, regulamentando as operações de compra de ativos privados autorizadas pelo questionado art. 7o da Emenda Constitucional nº 106, que tramitou no Congresso Nacional como PEC 10/2020.
Neste artigo, apresentamos uma breve análise da referida Circular 4.028, visando mostrar principalmente as graves consequências que essas operações representarão para a economia do país, afetando todas as gerações atuais e futuras, tendo em vista os seguintes aspectos:
1 – Ausência de limite do valor a ser gasto com a compra de ativos privados pelo BC;
2 – Comprometimento de grandes volumes de recursos públicos;
3 – Ausência de especificação dos ativos privados a serem adquiridos;
4 – BC poderá comprar ativos privados prescritos e podres;
5 – Risco de compra de ativos privados podres emitidos no exterior: Brasil vai virar o lixão dos papéis podres do mundo?
6 – A falácia da classificação de risco e do preço de referência;
7 – A realização da operação obedecerá a vontade do mercado;
8 – Devedores da Previdência Social poderão negociar com o Banco Central
9 – “Leilão” ficará a critério do Banco Central;
10 – EC 106 vai dar trilhões aos bancos e não exigiu contrapartida alguma ao país, e
11 – Necessidade de esclarecer alguns aspectos esdrúxulos:
a)Quais seriam os ativos privados emitidos por micro, pequena e média empresa?
b)Investidores individuais estrangeiros poderão vender ativos privados ao BC?
1 – Ausência de limite do valor a ser gasto com as compras de ativos privados pelo Banco Central
O valor da operação de compra de ativos privados pelo Banco Central poderá chegar a vários trilhões de reais, tendo em vista que não foi estabelecido limite algum para tal operação na EC 106, e tampouco na Circular 4.028.
Até nos Estados Unidos da América do Norte, onde o Banco Central (FED) é uma instituição privada, não foi dada autorização para que atuasse diretamente na compra de ativos privados em mercado de balcão, ou seja, não foi rebaixado a mero agente independente. Lá, o FED não poderá adquirir os títulos privados diretamente, o que será feito por uma companhia criada para isso, e foi estabelecido limite de valor e limite de prazo na emissão do título, como abordo em recente artigo[ iii ].
Aqui no Brasil, não foi estabelecido limite algum. Trata-se, portanto, de operação altamente temerária para as contas públicas, exigindo a atenção dos órgãos de controle e até mesmo da Polícia Federal.
2 – Comprometimento de grandes volumes de recursos públicos
O texto da Circular 4.028 confirma que o Banco Central irá pagar pelos títulos privados:
Art. 6o A liquidação das operações de que trata esta Circular ocorrerá entre o Banco Central do Brasil e as partes beneficiárias finais das operações, observando-se a entrega do ativo contra pagamento.
Como já havíamos alertado em Notas Técnicas elaboradas durante a tramitação da PEC 10[ iv], o Banco Central ficará com os ativos podres e os bancos (ou grandes fundos portadores dos ativos privados) receberão dinheiro público ou títulos da dívida pública e seus generosos juros.
Durante a tramitação da PEC 10, o presidente do BC declarou ao Senado que o valor da operação de compra de ativos privados seria de R$972,9 bilhões[ v] , ou seja, quase R$ 1 trilhão, no entanto, segundo levantamento feito pela IVIX Value Creation [vi] publicado pelo Estadão, esse valor de quase R$ 1 Trilhão corresponde a ativos privados que vêm sendo acumulados nos bancos há 15 anos, e não considera a correção monetária.
O Banco Central possui R$ 1,9 trilhão de títulos da dívida pública em sua carteira[ vii]. Grande parte desses títulos públicos em poder do BC tem sido usada para remunerar a sobra de caixa dos bancos nas chamadas Operações Compromissadas[ viii ].
A outra parte desses títulos poderá ser usada para comprar os papéis podres, ou seja, os bancos vão se livrar de seus papéis podres de cerca de R$ 1 trilhão, conforme afirmou o atual presidente do Banco Central[ ix ], e passarão a ficar com os títulos da dívida pública, recebendo os seus elevados juros!
3 – Ausência de especificação dos ativos privados a serem adquiridos
Chegou a constar da versão da PEC 10 votada e aprovada no Senado a especificação dos tipos de ativos privados que o BC poderia comprar, no entanto, referida especificação foi simplesmente apagada do texto votado e aprovado em seguida na Câmara dos Deputados. A EC 106 foi promulgada sem que o texto retornasse ao Senado, o que resultou em aprovação de textos distintos na duas casas legislativas, gerando a discussão sobre a inconstitucionalidade do Art. 7o da EC 106, objeto da ADI 6417[ x].
Interessante ressaltar que a manifestação do próprio Senado Federal ao Ministro-Relator da ADI do STF, Luiz Fux, desmente completamente as alegações das manifestações da Câmara dos Deputados e da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) [xi], mostrando que houve de fato alteração substancial no texto:
“Foram suprimidas a lista de ativos que constava das alíneas do inciso II e palavra “seguintes” constante do início do referido inciso. (…) Com estas modificações, a Câmara dos Deputados eliminou o rol que discriminava quais títulos poderiam ser comprados ou vendidos pelo Banco Central (inciso II), removendo também a expressão “seguintes” do início do inciso. Com a eliminação da restrição, a redação dada pela Câmara passou a permitir operações de compra e venda com todo e qualquer título.” [ xii] (grifos nossos)
A Circular 4.028 também deixa de especificar o tipo de papel a ser comercializado pelo BC.
A completa ausência de especificação do tipo de ativo privado a ser adquirido pelo BC abre a possiblidade de realização de negociações completamente obscuras e temerárias, como a que já foi anunciada em recente matéria publicada pelo Valor Econômico[ xiii], segundo a qual o “O Banco Central avalia comprar cestas de títulos privados :
Tais cestas de títulos podem conter inúmeros e diferentes ativos financeiros, inclusive títulos sem valor comercial algum, que não poderão ser identificados, pois estarão “empacotados” na referida cesta, o que impede a transparência exigida para negociações feitas com dinheiro público.
Ademais, não faz o menor sentido falar em “risco de crédito” ou “preço de referência” para cestas de títulos que misturam diversos tipos distintos de papéis financeiros, de naturezas diversas, riscos diversos e preços de referência diversos e até, em muitos dos casos, inexistentes, escondendo a verdadeira identidade e qualidade dos títulos que estão sendo de fato negociados, o que torna inócua toda a formulação inserida no Art. 8o da Circular 4.028.
A Circular 4.028 silencia-se totalmente acerca do tipo de ativo que o BC poderá comprar.
Em seu Art. 9º a Circular 4.028 prevê apenas que o BC não poderá comprar mais de 7,5% do total de ativos privados de sua carteira de um mesmo emissor. Observe-se que tal percentual se refere ao emissor, e não ao vendedor, que pode ser, de fato, o grande beneficiário das operações feitas no mercado secundário. Limita também a compra a 25% de uma mesma série de ativo. Ao final, no artigo 11 da Circular, admite que todos os parâmetros de seus artigos 8, 9 e 10 poderão ser descumpridos, na situação elencada, deixando aí evidente margem para brecha legal e mencionando apenas que não deixarão tal desenquadramento se ampliar!
4 – BC poderá comprar ativos privados prescritos e podres
Além de não especificar o tipo de ativo privado que o BC irá comprar, a Circular 4.028 também não coloca restrição alguma para a data original desses papéis.
Onde a Circular 4.028 menciona o prazo, ela fala somente do prazo de vencimento do título, que pode ser facilmente renovável nos sistemas das instituições financeiras.
Dessa forma, a Circular 4.028 deixa aberta a possibilidade para a compra dos títulos acumulados na carteira de “créditos podres” dos bancos há 15 anos, conforme levantamento feito pela IVIX Value Creation[ xiv], publicado pelo Estadão, antes mencionado.
Os títulos já prescritos que estão na “carteira podre” dos bancos há 15 anos poderão facilmente ser inseridos em cestas de títulos, que aceitam qualquer coisa, sob um novo rótulo. O próprio BC já anunciou a intenção de adquirir cestas de títulos, como noticiado[ xv].
5 – Risco de compra de ativos privados podres emitidos no exterior: Brasil vai virar o lixão dos papéis podres do mundo?
Ao não especificar o tipo de ativo privado que o BC irá comprar, a Circular 4.028 deixa aberta a possibilidade de compra inclusive de ativos privados provenientes do exterior.
Tal fato é extremamente grave, tendo em vista o grande volume de ativos privados podres arquivados em bad banks no exterior, à procura de um destino, a exemplo do volume de 74 bilhões de euros de “ativos problemáticos” do Deutsche Bank, citados em apenas uma notícia[ xvi]:
O banco alemão ainda prevê a transferência de € 74 bilhões em ativos problemáticos para um “bad bank”, unidade que concentrará empréstimos de alto risco e inadimplentes que poderão ser vendidos para outras instituições ou gestoras de recursos.
O Banco Central Europeu (instituição privada) já anunciou que está preparando plano de “bad banks” para receber uma onda de centenas de bilhões de euros de papéis podres[ xvii].
Outra notícia[ xviii ] mostra que fundos estão comprando 67 bilhões de dólares em papéis podres no exterior, “para aproveitar as oportunidades criadas pela pandemia do coronavírus”.
O risco desses papéis arquivados em bad banks mundo afora serem reestruturados em cestas e vendidos para o Banco Central do Brasil é gravíssimo.
6 – A falácia da classificação de risco e do preço de referência
A Circular 4.028 reproduz o que consta do texto da EC 106, no que diz respeito à classificação de risco dos ativos privados por agência internacional e preço de referência.
Ao dizer isso, a diretoria do BC já está indicando que o “ativo privado” a ser adquirido só poderá ter origem em grandes empreendimentos (tendo em vista que segundo a Lei 6.404, somente grandes empresas organizadas como S/A podem emitir debêntures por exemplo), ou o ativo privado será uma cesta ou pacote de títulos que aceitam qualquer coisa, inclusive títulos podres vindos do exterior. O próprio BC já anunciou a intenção de adquirir cestas de títulos[ xix], como antes mencionado.
Toda tentativa de estabelecer critérios matemáticos no art. 8º da Circular 4.028 torna-se inócua diante da recomendação da Anbima, de que a avaliação de risco (rating) deve ser usada somente como informação adicional, e não como condição suficiente para aquisição de créditos privados.
O Parecer de Orientação 11/2008 da Anbima trata das verificações a serem procedidas para a compra de créditos privados, citando várias cautelas relacionadas à verificação, análise do crédito e acesso às informações da emissora; análises jurídicas de crédito, compliance; riscos; avaliação; documentação; garantias e respectivas condições dessas garantias; ligações societárias; auditorias independentes das demonstrações financeiras da emitente e a utilização de rating apenas como uma informação adicional.
A Circular 4.028 deu importância apenas ao que a Anbima considera secundário, conforme trecho de sua recomendação:
(vii) utilizar o rating e a respectiva súmula do ativo ou do emissor, fornecido por agência classificadora de risco, quando existir, apenas como informação adicional à avaliação do respectivo risco de crédito e dos demais riscos a que devem proceder, e não como condição suficiente para sua aquisição.
Assim, além de sequer existir avaliação de rating para a imensa maioria dos ativos privados, a recomendação da Anbima é no sentido de que tal avaliação, quando existir, deve ser usada apenas como informação adicional e não como condição suficiente para a aquisição do derivativo, servindo apenas como uma informação adicional, portanto, sem relevância perante as demais informações recomendadas.
Ademais, uma das lições aprendidas com a crise de 2008 foi que o funcionamento das agências de risco tem sido altamente questionado por todos os lados, inclusive por inúmeros estudos acadêmicos[ xx], devido à sua atuação marcada por conflitos de interesses, pois são sustentadas pelos bancos e outro “clientes”!
Além disso, grosseiros erros de avaliação, denúncias de venda de pareceres e até fraudes denunciadas pelo Governo dos Estados Unidos da América do Norte[ xxi ] fazem parte do histórico dessas agências de risco!
Segundo especialistas de mercado, essas avaliações de risco por agências internacionais custam, em média, de 30 a 50 mil dólares. Além de não emitir ativos privados, alguma microempresa, pequena ou média tem como arcar com esse custo? Chega a ser uma enganação a menção a essas pequenas empresas tanto na EC 106 como na Circular em exame.
No caso do Preço de referência dos títulos privados temos outra falácia. O preço de referência não é algo simplesmente “informado”, mas sim um preço apurado em decorrência da “prática” obtida nas operações realizadas. E no desregulado mercado secundário, em especial em tempos de crise, esse prática não pode ser verificada, pois os negócios param de acontecer e o mercado fica sem referência alguma.
A Circular 4.028 indica 2 instituições privadas para dizer o preço de referência: B3 (ex-Cetip) e Anbima.
Conforme constou do documento ALERTA AO SENADO (1)o preço de referência não funciona nesse desregulado mercado secundário:
Não existe referência de preços no mercado de balcão, especialmente em tempos de crise. Existe uma tentativa de balizar estes preços via as “marcações a mercado”, mas em tempo de crise aguda esses mercados perdem completamente a liquidez, os negócios param de acontecer, e portanto se perdem quaisquer referências de preço. E não se perdem por pouco, perdem por muito. A distância entre um preço de compra de um papel em um banco ou fundo e o de venda em outro pode às vezes chegar a mais do que o dobro, 100% (como por exemplo uma oferta de compra por 40% do valor de face e uma oferta de venda a 80% do valor de face). O mercado fica tão sem referência que não raramente existe arbitragem entre diferentes participantes de mercado, com o preço de venda de um sendo abaixo do preço de compra de outra, dado que ambos não veem a oferta do outro publicada em um sistema, como existe num mercado organizado.
Qual é a lógica de o BC atuar nesse mercado secundário de títulos privados, podendo adquirir papéis podres sem limite, e justamente no momento de crise, quando esses negócios param de acontecer? Está escancarado que o objetivo da operação autorizada pela EC 106 é colocar o Banco Central como receptáculo das carteiras de papéis podres, que os bancos esperavam vender com a expectativa de retomada da economia, e que, diante da mudança de cenário, com o advento do coronavírus, querem que o Banco Central assuma os seus prejuízos, dos quais os bancos já se ressarciram via provisão e dedução na apuração de seus lucros, tanto é que vêm lucrando centenas de bilhões de reais nos últimos anos!
Ao comprar títulos no mercado secundário, o Banco Central não estará ajudando nenhuma das empresas que eventualmente tenham emitido títulos privados, porque no mercado secundário os fluxos de dinheiro acontecem entre investidor e investidor.
Ao atuar no mercado secundário, o Banco Central estará unicamente tendo a possibilidade de comprar os títulos privados em poder de investidores, dentre os quais sobressaem as carteiras de papéis podres dos bancos (que somavam R$ 1 trilhão em novembro/2019, sem computar a correção monetária, como mencionado anteriormente) para transferir prejuízos (dos quais já se ressarciram via provisão) aos cofres públicos.
Qual a justificativa para isso? todo ato administrativo tem que ter motivação! qual a motivação para assumir eventuais prejuízos de lucrativos bancos e transferi-los para os cofres públicos?
7 – A realização da operação obedecerá a vontade do mercado
De acordo com o art. 4 da Circular 4.028, o mercado é que vai determinar o momento em que será realizada a operação:
Art. 4o (…)
§ 1o A Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil, limitada ao enfrentamento da calamidade pública nacional, levará em consideração, para a realização da oferta pública de que trata o art. 3o , as condições de mercado, em particular a oferta e a demanda por liquidez no segmento correspondente do mercado financeiro, prezando pelo seu regular funcionamento.
Como fica o interesse público, diante de tamanho privilégio dos bancos, em plena pandemia? Ainda mais porque o setor tem batido recordes de lucros de muitos bilhões em todos os últimos anos, e mesmo nos períodos de queda do PIB (2015/2016) os seus lucros têm ficado perto de R$ 100 bilhões/ano!
8 – Devedores da Previdência Social poderão negociar com o Banco Central
De acordo com o parágrafo único do art. 5 da Circular 4.028, os devedores da Previdência Social poderão negociar com o Banco Central:
Parágrafo único. O Banco Central do Brasil poderá comprar ativos privados de propriedade de pessoas jurídicas em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, na forma do disposto no parágrafo único do art. 3o da Emenda Constitucional no 106, de 2020.
Dessa forma, além de não exigir contrapartida alguma em troca dos trilhões que serão dados aos bancos, a operação sequer exige a regularização de débitos junto à Previdência Social.
9 – “Leilão” ficará a critério do Banco Central
O art. 3º da Circular 4.028 dá a entender que haveria transparência na operação de compra dos papéis, por meio de “oferta pública”. No entanto, a leitura cuidadosa do texto evidencia que, a critério do Banco Central, as ofertas poderão ser coletadas por meio de mensagens eletrônicas, ou seja, não se trata de um leilão de fato e a garantia de transparência é nula.
Art. 3º As operações de que trata esta Circular serão conduzidas pelo Banco Central do Brasil por meio da realização de oferta pública, da qual poderão participar todas as instituições financeiras cadastradas no módulo complementar Oferta Pública (Ofpub) do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic).
§ 1o As pessoas jurídicas não financeiras e as pessoas físicas poderão participar da oferta por intermédio das instituições referidas no caput.
§ 2o Na hipótese de indisponibilidade do módulo complementar Ofpub, ou a critério do Banco Central do Brasil, as propostas para a oferta pública de que trata o caput poderão ser coletadas por meio de mensagens eletrônicas (e-mail), assinadas digitalmente pelo proponente, por intermédio de certificado digital emitido por autoridade certificadora da Infraestrutura de Chaves Públicas do Brasil (ICP-Brasil).
Cabe ressaltar também que o artigo 12 da Circular 4.028 prevê a divulgação de detalhes das operações apenas após a liquidação, ou seja, quando tudo já estiver consumado. Ademais, caso esta liquidação seja feita em partes, só se conhecerá o beneficiário muito tempo após a operação.
10 – EC 106 vai dar trilhões aos bancos e não exigiu contrapartida alguma ao país.
A EC 106 significará a entrega de trilhões de reais aos bancos, em troca de papéis podres, que ninguém mais compraria, e não exigiu nenhuma contrapartida em termos de investimento da economia do país ou manutenção de empregos e pagamento de salários.
As aparentes restrições que constam do art. 8º da EC 106/2020 (repetidas no art. 7º da Circular 4.028) asseguram a distribuição dos lucros garantidos em lei (art. 202 da lei 6.404) ou nos respectivos estatutos das instituições financeiras, e não impedem que os lucros excedentes, resultantes das vendas de ativos privados ao Banco Central sejam apropriados pelos sócios dos bancos e donos das instituições financeiras que irão efetuar as referidas vendas ao BC, como se comenta a seguir.
A Circular 4.028 reafirma que o pagamento de juros sobre o capital próprio e dividendos poderá ser feito até o mínimo obrigatório estabelecido em lei (Lei 6.404, art. 202), de 25% do lucro líquido, ou seja, o pagamento do dividendo mínimo está garantido aos acionistas.
Ademais, esse ensejo de restrições não se aplicará às instituições que estejam apresentando proposta de venda de ativos pertencentes a “terceiros”, sem especificar se esses terceiros poderiam ser ou não outras instituições financeiras ou fundos:
§ 5º As vedações de que trata o caput não se aplicam às instituições financeiras que estejam apresentando proposta de venda de ativos pertencentes a terceiros.
Dada a desregulamentação do mercado secundário, onde as operações se dão por telefone, a instituição financeira que atuar como intermediária (de outras instituições ou fundos possuidores de títulos privados ou outros terceiros) ficarão livres de qualquer restrição. Ou seja, bastaria à instituição que vende ao BC não registrar os ativos privados em sua carteira própria, ou alternar entre as diversas instituições a apresentação das propostas, para que fiquem livres dessas restrições? O texto da Circular dá margem para diversas interpretações e brechas!
No art. 7º, a Circular 4.028 limita-se a informar que o montante não distribuído de lucros em decorrência da vedação do art. 8º da EC 106 não poderá ser objeto de obrigação de desembolso futuro. Porém, isso não impede que os ganhos de tais operações sejam distribuídos após o final do estado de calamidade. O art. 7º da Circular apenas impede que tal repasse seja formalizado como uma “obrigação”.
Assim, mesmo no caso de os bancos serem os próprios vendedores de seus ativos privados, o lucro excedente resultante dessa venda pode ser acumulado e, quando terminado o estado de calamidade, ser distribuído na forma de lucros e aumento de remunerações de altos funcionários.
11 – Necessidade de esclarecer alguns aspectos esdrúxulos:
a) Quais seriam os ativos privados emitidos por micro, pequena e média empresa?
Somente grandes empresas (S/A) emitem debêntures (Lei 6.404), e não se tem conhecimento de emissões de IPO ou qualquer outro ativo privado por micro, pequena ou média empresa, ainda mais que tenha avaliação por agência internacional de risco, cujo custo varia entre 30 e 50 mil dólares, ou seja, valor inviável para empresas de pequeno porte.
Cabe ao Banco Central explicar que tipo de ativos privados seriam esses de micro, pequena e média empresa mencionados na Circular 4.028.
b)Investidores individuais estrangeiros poderão vender ativos privados ao BC?
O §1º do artigo 3º da Circular 4.028 menciona a possibilidade de pessoas físicas venderem ativos privados ao BC, através de uma instituição financeira. Não há restrições quanto à nacionalidade das pessoas físicas, dando a entender que investidores individuais estrangeiros poderão ficar livres de seus ativos problemáticos e vende-los ao Banco Central do Brasil.
Conclusão
A breve análise desses 11 aspectos da Circular 4.028 só reforça o entendimento reiteradamente manifestado em diversos artigos, notas técnicas e pronunciamentos já expedidos sobre a compra de ativos privados pelo Banco Central, que poderá comprometer vários trilhões de reais e sem uma justificativa sequer plausível.
Ao longo da tramitação da PEC 10, autoridades afirmaram que o objetivo seria ajudar as empresas, o que depois foi desmentido no relatório do Senador Anastasia[ xxii] e em pronunciamento de Rodrigo Maia[ xxiii ], ficando claro para todos que somente os bancos (setor mais lucrativo do país) e fundos que especulam com ativos privados serão os maiores beneficiários da compra desses papéis pelo Banco Central, às custas de trilhões de dinheiro público.
Posteriormente, se alegou a necessidade de dar liquidez ao mercado financeiro, o que também foi desmentido pelo próprio mercado[ xiv ], abarrotado de liquidez.
Essa compra de ativos privados irá impactar gravemente as finanças públicas, gerando volumes imensos de dívida pública, afetando negativamente tanto a geração atual como todas as gerações futuras, pois tamanha dívida exigirá cortes ainda mais drásticos nos gastos e investimentos públicos, além da contínua entrega de patrimônio e riquezas públicas para o seu pagamento.
Mais além da grave inconstitucionalidade presente na aprovação de textos distintos na Câmara e Senado, até agora ainda não foi devidamente explicada qual a motivação para tal operação altamente temerária, e não foi respondida a questão: Por que gastar trilhões para comprar papel podre?